Por Fabíola Fernanda Patrocínio Alves
No mês de março de 2020, fomos impactados pela presença da Covid-19, uma pandemia que nos obrigou a construir novos modos de vida em um período tão curto de tempo. Cada pessoa tem reagido como lhe é possível. Algumas se rendem ao medo (do contágio, da morte, do futuro), outras se reinventam, adotando formas criativas para lidar com uma realidade tão assustadora. Também é um tempo aproveitado para novas aprendizagens, reflexões sobre a própria existência e valorização das coisas simples da vida, como preparar um almoço ou um lanche em família. Lamentavelmente, também tem sido um tempo de muito sofrimento, adoecimento e luto.
Na área da Educação, tivemos uma experiência inusitada, com a transformação do modelo habitual de escola. Por um lado, a pandemia evidenciou aquilo que já sabemos, mas nem sempre conseguimos admitir. Escancarou as desigualdades sociais e revelou o quanto estamos longe de construir oportunidades mais igualitárias no campo
educacional. Durante o ano de 2020, vislumbramos milhares de estudantes que não tiveram a oportunidade de continuar os estudos do ano letivo com dignidade, tendo um acesso (quase sempre precário), aos conteúdos pedagógicos disponibilizados em apostilas, redes sociais ou outros meios conforme definições de estados e municípios.
Os docentes e discentes que tiveram a oportunidade das aulas remotas, de alguma maneira, foram considerados privilegiados, pois foram esses encontros virtuais que possibilitaram a continuidade do ano letivo com o cumprimento dos objetivos pedagógicos. De toda forma, ainda que considerados privilegiados pelo acesso à tecnologia (internet, smartphone, tablet, notebook, computador), tanto os docentes quantos os discentes tiveram que se reinventar em uma escola que passou a acontecer dentro de casa, misturada com a intimidade da família, seu aconchego e também seus conflitos e dramas. De toda forma, ainda que com condições de estudos mais favoráveis, os estudantes e docentes das aulas remotas também vivenciaram o inevitável sentimento de frustração, insegurança e uma ausência de reconhecimento da escola habitual. E foi nessa escola tão diferente que tivemos a oportunidade de refletir sobre a docência.
Estamos habituados com um modelo de escola tradicional, práticas amplamente difundidas no século XVIII que, ainda, nos são tão familiares, como estudantes enfileirados, corpos docilizados e obedientes, como foi problematizado por Michel Foucault (2014) em seu livro vigiar e punir. Trata-se de um dispositivo escolar, formado por muitos elementos como salas de aula, provas, filas, castigos, gritos, merenda, portas abertas, portas fechadas, enfim uma maquinaria que produz relações de poder, oferecendo aos gestores, docentes e funcionários da escola uma suposta e prazerosa sensação de que residem em um porto seguro, tendo em suas mãos o pleno governo da vida dos estudantes.
Com a experiência da pandemia Covid-19, mais uma vez ficou evidente o quanto nossos corpos são frágeis e que, de fato, não temos controle sobre a nossa própria vida. Como lembra Judith Butler (2015), temos uma condição ontológica marcada pela precariedade. Nesse sentido, somos precários porque a nossa vida está sempre nas mãos de alguém. Dependemos de pessoas que conhecemos e também daquelas que desconhecemos totalmente, como por exemplo, as que nos dizem que é tempo de permanecermos em isolamento social, tempo de fechar as escolas, de sair de casa, de fechar ou abrir o comércio, abrir ou fechar as igrejas, de usar máscaras ou álcool em gel.
Como docente, acredito que o cenário da pandemia nos aponta não apenas a finitude ou a precariedade da nossa existência, mas também nos desafia a revisitar nossas práticas docentes e, acima de tudo, revisitar a nós mesmos, para constatarmos que não temos o controle que pensávamos ter sobre nossos estudantes, que as estratégias de vigilância e punição tão atreladas à docência de uma hora para outra ruíram e que não sabemos mais quem é aquele que faz o login de acesso a uma sala virtual. Em uma aula remota não sabemos, de fato, quem são os estudantes que nos ouvem. Também não conseguimos monitorá-los enquanto realizam suas provas ou se são eles mesmos que as fazem.
A experiência da docência em tempos de pandemia e isolamento social parece produzir algo parecido como o que Deleuze (1992) fala sobre a lógica de um pensamento. Algo como “um vento que nos impele, uma série de rajadas e de abalos. Pensava se estar no porto e de novo se é lançado ao mar” (DELEUZE, 1992, p. 118). Talvez uma das aprendizagens possíveis nestes tempos tenebrosos e incertos, em que nosso modelo tradicional de escola parece ruir, seja considerarmos que mesmo não ruindo, esse modelo pode ser insuficiente e ineficiente. Quem sabe, aproveitamos esses abalos que a pandemia provocou em nós mesmos e em nossos modos habituais de ensinar e de aprender para buscarmos uma docência outra? Creio que no ano letivo de 2020 ficou evidente a possibilidade de pensarmos uma escola outra (faculdade também) em que os estudantes não estejam apenas em filas, silenciados, simplesmente “digerindo” um conhecimento que lhes é transmitido, sob a pressão de avaliações aplicadas em contextos de tensões e ameaças. É urgente construirmos uma docência que atue a favor da criação, da potência, da vida, com ou sem pandemia.
Não sabemos os rumos da Covid-19 em 2021. Estamos ansiosos pela vacina, abertura das escolas e retorno das aulas presenciais. Enquanto isso, talvez seja possível praticar aquilo que Foucault (1984) nos convida a fazer: estabelecer uma relação de si para si, empreender batalhas que, também, são de si para si. Nesse processo de relação consigo, talvez seja possível abrirmos se não grandes crateras, pelo menos fissuras pelas quais seja possível respirar e conseguir novo fôlego para prosseguirmos, na vida e na docência.
REFERÊNCIAS:
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: Quando a vida não é passível de luto? Tradução de Sérgio Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: 34,1992.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade II: o uso dos prazeres. 13ª ed. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 42 ed. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2014.
4 Comentários
Realmente foi escancarado a desigualdade em vários aspectos,mais principalmente na educação…quem tem poder aquisitivo maior tem acesso ao melhor da educação…essa que seria muitas vezes a solução pra muitos problemas, enquanto isso aqueles sem condições permanecem a mercê das migalhas lançadas por um governo promíscuo que só se importa com seu próprio benefício, que usa a condição alheia pra tirar vantagem pra si próprio!
Que texto rico !
Acredito muito que a educação é quem promove grandes mudanças em nossa sociedade, e precisamos lutar por ela, pois sabemos que as oportunidades não são igualitárias para todos…
Muito edificante.
Comentários Ieda:
O texto é interessante, atual e nos convida a pensar sobre as desconstruções que ocorreram no modo tradicional de ensino e aprendizado causado por um ser invisível e mortal, o Corona Vírus.
Fico pensando em todos os filósofos da educação que morreram de estudar para sugerir que mudanças precisavam ser feitas para poder oferecer aos alunos condições de acesso ao conhecimento, sem ser esse modelo de estudantes passivos ao repasse de conteúdos e aí vem o vírus e pega todo mundo desprevenido tendo que inventar outras formas de ensino. E quem perde com isso, todo mundo, toda a sociedade, agindo como um passarinho que passou a vida toda preso na gaiola, recebendo agua e comida e agora se encontra solto tendo que buscar por conta própria sua agua e sua comida.
Ao ter que soltar os passarinhos, a escola perdeu o controle sobre os mesmos como você mesmo disse e talvez, na tentativa de se recuperar esse controle, fez-se uma aliança com a tecnologia. Mas, pode-se pensar que a tão falada e famosa tecnologia é uma faca de dois gumes, pois quando todo mundo achou que a tecnologia iria resolver nossa vida, a pandemia mostrou que ela é falha também. Primeiro porque nem todo mundo tem acesso a internet rápida e computadores de boa qualidade (por causa das desigualdades sociais) e não podemos esquecer o congestionamento no sinal que faz com que as transmissões nem sempre fiquem boas, com conexões caindo, prejudicando os encontros, as aulas e etc.
Essa geração tecnológica de hoje se revelou grandes traíras para a própria tecnologia, pois enquanto a mesma era usada como divertimento, lazer, para bisbilhotar a vida dos outros ou para facilitar alguma atividade escolar, era tudo de bom, agora ter que ficar no computador para estudar, para muitos virou um tormento.
Algumas escolas enviavam atividades para os alunos fazerem em casa, mas quando se avalia as mesmas com um senso mais crítico, eram apenas para inglês ver, (No meu caso tanto eu e minha filha caçula chegamos à conclusão de que aquilo não iria fazer diferença e optamos por não fazer, preferindo optar pela repetição de ano para ter acesso aos conteúdos, vamos ver agora em 2021 como resolvermos isso. Graças a Deus minha filha aos treze anos de idade possui um excelente senso crítico de tudo que ocorre em nosso país em vários setores, inclusive ela é antibolsonaro.
Estudar em casa virtualmente, como você disse, desestabilizou a rotina de muitas famílias e muita gente mesmo em casa, não deu conta de criar uma rotina com os filhos, pois estavam acostumados a deixar essa tarefa para a escola, exceto em famílias das propagandas do governo e das novelas globais, muito estruturadas, organizadas com filhos exemplares, obedientes, estudando com computadores bons em uma bancada ou escrivaninha feita para manter uma postura corporal confortável, a bunda numa cadeira macia de rodinhas em um ambiente silencioso e climatizado. E com uma boa iluminação e um bom lanche servido pela empregada negra.
Por isso fico pensando, será que a sociedade, as pessoas em situação de vulnerabilidade social querem ser livres, serem donos de sua própria vida, sem viver sob o sistema de controle principalmente quando atrelado a esse controle esta a oportunidade de se ter acesso a alimentação e a socialização nos espaços escolares. Obediência em troca de comida.
Lembra do filme A ilha das Flores? Ironicamente o narrador fala sobre a liberdade, as pessoas eram livres, não tinham dono e por isso viviam dos restos dos porcos porque os porcos tinham dono. É a mesma coisa, um jogo perverso, acho que ai seria o controle pelo biopoder.
Estamos acostumados a viver sobre certas regras, principalmente a escola e creio ser muito difícil, doloroso, mas não impossível, para nós professores e alunos sabermos viver com liberdade para nos organizar, nos disciplinar, nos implicar com o nosso próprio aprendizado, por isso muita gente esta ansiosa pela volta do ensino tradicional no ambiente presencial da sala de aula. Eu até entendo esse desejo de muita gente querer ser controlado, dá menos trabalho obedecer do que ter que se reinventar e é ai que a educação, a docência precisa ser libertadora, já dizia Paulo Freire, por isso que, ser um verdadeiro professor, é só Jesus na causa, ainda agora diante desse ensino a distancia. Eu acredito que muitos donos de escolas que possuem a educação como negócio irão manter muitas disciplinas online para não ter tantos custos principalmente em relação a nós docentes.
Penso que muita gente não vai sair diferente dessa pandemia, penso que muita gente não se afetou e se bobear pode ate sair pior do que entrou. O ser humano é imprevisível.
O seu texto é muito bom, olha o tanto de coisa que eu pensei….