Por Fabíola Fernanda Patrocínio Alves
A pergunta: “crianças com deficiência brincam?” pode parecer absurda. Ela sugere a resposta óbvia de que todas as crianças brincam. Contudo, precisamos refletir sobre a abrangência deste brincar e isso nos leva a diversas outras indagações: como elas brincam? Com quem elas brincam? Em qual tempo elas brincam? Creio que refletir sobre a experiência do brincar em crianças que possuem deficiência é de suma importância, uma vez que elas geralmente são submetidas a intervenções clínicas intensas e dolorosas, acompanhadas de experiências de solidão.
Certa vez, uma mãe me disse que não conseguia brincar com sua filha de seis anos, pois ela não falava e não apresentava coordenação motora. A única parte do corpo desta criança que se movimentava era o pé esquerdo e a única forma de comunicação era o olhar. Esta mãe compartilhou sua dor em se deparar com o fato da filha não conseguir segurar um brinquedo. A forma que encontrei de auxiliar esta mãe e a professora da criança (passei a fazer intervenções na escola) foi de pensarmos as possibilidades apresentadas por aquele corpo aparentemente inerte. Era preciso explorar o pé esquerdo, ponto de contato daquela criança com os objetos e pessoas a sua volta. Muitas vezes pensamos que não há o que fazer diante de uma criança com deficiências múltiplas ou até mesmo uma única deficiência e este equívoco tende a impedir que estimulemos o brincar das crianças. Assim, elas acabam tendo uma infância marcada apenas por dor, solidão e preconceito.
Uma boa referência para nos ajudar a refletir sobre a potencialidade da criança para o brincar é a noção proposta por Deleuze e Guattari (1996) de “corpos sem órgãos”. Os autores dizem que foi imposta a nós uma forma padronizada para usarmos nossos corpos. Aprendemos o que devemos fazer com a boca, os olhos, os pés, ou seja, há atribuições específicas para todas as partes do corpo. Em contrapartida, um “corpo sem órgãos” é uma prática que nos leva a um trabalho criativo de fazer nosso corpo potencializar a vida. Um corpo que seja “pleno de alegria, de êxtase e de dança” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 10).
Creio que esta seja a nossa contribuição com as crianças que possuem deficiências: auxiliá-las a fazer seus olhos se transformarem em “ouvidos”, os ouvidos em “olhos”, as mãos em “olhos” e tantas outras possibilidades de transgressão. No caso daquela criança que eu atendi o movimento criativo foi o de transformar o pé esquerdo em “mão”, em “boca”, em “perna”. Se conseguirmos pensar o corpo deficiente como um “corpo sem órgãos” veremos que ele é um corpo potente e, assim, daremos conta de proporcionar às crianças experiências lúdicas e prazerosas, por meio do brincar, entendendo que este corpo não deve ser apenas alvo de intervenções clínicas ou da nossa reação de horror ou repulsa.
REFERÊNCIAS:
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. 28 de novembro de 1947 Como criar para si um corpo sem órgãos. In: Mil Platôs. Trad. Aurélio Guerra Neto et al. São Paulo: 34, 1996. v. 3, p.8-27.
1 Comentário
Muito interessante essa forma de ver a vida com outros olhos,saber q é uma criança e poder proporcionar a ela uma vida de criança msm quebrando as regras. Amei aprender mais um pouquinho e poder colocar em prática com minha bibia. Bjs e parabéns pela iniciativa.