Meu nome é Fabíola

Sou graduada em Psicologia, mestre em Psicologia e doutora em Educação.
Nessa seção “Quem eu sou”, compartilho um pouco da minha história.


Uma Experiência Limite

Nasci na região metropolitana de Belo Horizonte, em uma cidade com condições precárias de saneamento, urbanização e de moradia. As ruas eram de terra, a água não era tratada e o acesso à saúde muito limitado. Sou de uma família de quatro irmãos. Minha mãe (dona de casa) e meu pai (trabalhador de uma mineradora existente na região) sempre foram pessoas muito batalhadoras e nos deram o melhor que conseguiram, driblando os desafios de uma vida muito “apertada” financeiramente.

Aos três anos, fiquei doente e minha família acreditava que seria algo passageiro. “Mais uma crise de bronquite?” A febre, dores de garganta, dores nas pernas talvez fossem também os sinais de uma gripe ou resfriado (pensaram meus pais). Contudo, se tratava de uma doença muito mais grave, que abriria uma jornada para a vida toda. Depois da “peregrinação” por hospitais e consultórios médicos, cheguei a um hospital de Belo Horizonte. Era uma noite fria e chuvosa. Meus pais não imaginavam o que estava por vir. Então, saíram de casa com poucos agasalhos. Naquela madrugada, meu pai precisou providenciar alguma coisa para me agasalhar e o que conseguiu foram folhas de jornal para me aquecer. Foi ali que tive o diagnóstico de poliomielite.

Depois do diagnóstico, fui imediatamente internada em um hospital infantil que à época tratava exclusivamente de doenças infecciosas do sistema nervoso central. Meu primeiro destino foi uma ala de isolamento. Permaneci quase um mês naquele lugar e os primeiros dias foram uma verdadeira batalha entre a vida e a morte. Certo dia, os médicos disseram que, talvez, eu viveria mais 24 horas. O que se via naquele bercinho de um quarto solitário era uma menina de três anos, imóvel, estando por perto mais a morte do que a vida. Tanto é que minha mãe, quando ia me visitar, primeiramente ia ao necrotério do hospital, para depois subir até o quarto, onde me via por uma janela de vidro (devido ao período contagioso da doença, eu não podia ter contato físico com ninguém, nem mesmo com a minha mãe. Ela me via, mas eu não a via). Depois de muitos anos, compreendi o motivo do ritual da minha mãe. Ela me explicou que preferia ir ao
necrotério primeiro e ter a alegria de não encontrar meu corpo lá, o que a fazia encher-se de esperança, do que ir primeiro à enfermaria e correr o risco de se deparar com o berço vazio. Comemorando o fôlego de vida a cada 24 horas, superei a fase aguda da doença e saí do isolamento.

Enfrentei mais três meses de internação, mas em um contexto pouco melhor. Fora do isolamento, podia conviver com as dezenas de crianças que tinham condições semelhantes ou piores do que as minhas. Precisei aprender a lidar com as dores das intervenções médicas, a saudade da minha casa, a solidão, principalmente em dias especiais como o Natal, Ano Novo e meu aniversário de quatro anos. Também tive que começar a compreender o que significaria a nova experiência de nunca mais poder andar. Tudo isso que enfrentei só foi possível graças à fé em Deus que desde a infância aprendi a praticar. Creio que essa fé foi o principal componente que me impulsionou na certeza de que os dias vindouros seriam melhores.

Minha volta para casa foi grandemente comemorada, pois afinal foram praticamente quatro meses longe dos meus irmãos. Ao me verem, a primeira providência que tomaram foi tentarem colocar os chinelos nos meus pés para me ensinarem a andar de novo. Mas, aos poucos, eles também entenderam que todo aquele esforço era em vão e passaram, assim como eu, a aceitar a nova realidade.

A jornada estava iniciada e prosseguiria com tratamentos médicos, uso de aparelhos ortopédicos que deixavam marcas roxas em meu corpo, sessões bastante limitadas de fisioterapias, devido à falta de recursos financeiros para um atendimento mais apropriado. Por fim, o tratamento se interrompeu e passei a viver uma vida predominantemente doméstica, arrastando para acompanhar as crianças (irmãos e vizinhos) que enchiam o quintal da minha casa. Assim, tentava viver intensamente minha infância, a despeito de todo aprisionamento vivido em meu corpo.

Educação como Prática de Liberdade

Aos seis anos chegou a hora de ir para a escola. Meus pais recebiam os mais diversos “conselhos” a respeito da minha vida escolar. Algumas pessoas diziam a eles que não valia a pena me colocarem na escola e que seria suficiente que conseguissem uma professora para me ensinar a ler e a escrever em casa. Contudo, estudar já fazia parte dos meus sonhos e achava horrível a ideia de não poder ir à escola.

Graças a Deus, meus pais escolheram investir na minha educação e aos seis anos iniciei no então chamado “jardim de infância”, marcando o inicio de uma trajetória acadêmica muito desafiadora, mas ao mesmo tempo maravilhosa, da qual tenho grande orgulho! Minha mãe me carregava até à escola, voltava para casa a fim de cuidar dos meus irmãos e retornava para me buscar. No tempo que permanecia na escola, precisava contar com as professoras que, com grande carinho e disponibilidade, me carregavam para o pátio, outros ambientes e, até mesmo, ao banheiro (o que me trazia muito constrangimento).

Da pré-escola à terceira série, minha mãe me carregou. Devido às nossas condições financeiras muito ruins, não podíamos comprar uma cadeira de rodas. Quando completei nove anos, ganhei uma cadeira apropriada à minha idade. Foi um grupo de amigos do meu pai que se reuniu para me presentear. Tinha muita vergonha da cadeira, me sentia inferior, com a autoestima fragilizada e muito medo de não ser aceita. Foi esse mesmo grupo de amigos que nos apoiou financeiramente e afetivamente para que eu retomasse meu tratamento ortopédico.

Aos dez anos, fiz duas cirurgias nos quadris que me possibilitaram o uso de uma órtese e bengalas, propiciando uma nova forma de locomoção. Essas cirurgias aconteceram
quando eu cursava a quarta série. Em função delas, eu teria que me ausentar da escola por um período de seis meses. Nesse tempo era necessário que eu permanecesse engessada do tórax até os pés. Então precisaria ficar apenas deitada. Para eu não perder todo o ano letivo, algo que para mim era inadmissível, minha família fez um acordo com a escola e conseguimos uma professora para me atender em casa. Essa professora, inesquecível, é Márcia. Ela era nossa vizinha e havia acabado de se formar em magistério. Com grande generosidade, ela realizou o trabalho para minha família de forma totalmente voluntária. Semanalmente, ela ia à escola, pegava o planejamento das aulas e as atividades com minha professora oficial e fazia o trabalho comigo acamada. Como não podia me sentar, usava uma prancheta para apoiar os cadernos e atividades. No segundo semestre daquele ano, retornei à escola. Apesar de muito fragilizada pelas intervenções cirúrgicas e muitos meses só deitada, consegui concluir os meus primeiros anos de ensino fundamental.

A partir do quinto ano, passei a frequentar a escola usando as órteses (aparelho ortopédico e as bengalas). Depois de um processo bastante lento, alcancei autonomia para me locomover e, para minha grande felicidade, deixei de usar a cadeira de rodas. Foi dessa forma que fiz o restante do ensino fundamental e o ensino médio. Embora já conseguisse uma locomoção melhor, ainda era muito dependente, sobretudo por morar em um lugar com declive, falta de acessibilidade no transporte público e nas escolas. Sendo assim, continuava contando com a ajuda da minha mãe para ir à escola. Aos dezessete anos concluí o ensino médio, ávida por dar sequência aos estudos e realizar meu sonho de fazer faculdade.

Novos Vôos!

Desde a infância, meu desejo era de chegar à faculdade. Apesar das limitações físicas, da pobreza e falta de perspectivas, sempre fui uma sonhadora e esses sonhos foram, gradativamente, se tornando realidade.

Quando iniciei o curso de Psicologia meu desejo era atuar nas áreas clínica e educacional. No segundo ano do curso, comecei a buscar o primeiro estágio. Certo dia estava andando com a minha mãe por uma Avenida de Belo Horizonte e avistamos uma associação de pessoas com deficiência. Descobrimos que lá aconteciam encaminhamentos para estágios e empregos. Foi por meio daquela associação que consegui o meu primeiro estágio na área da Psicologia. O que não imaginava era que aquela oportunidade seria para trabalhar com pessoas com deficiência. Aquele estágio foi uma porta que se abriu para me colocar em um caminho que, há vários anos tenho grande prazer em trilhar: trabalhar enlaçando três áreas muito especiais para mim: Educação, Psicologia e o campo da deficiência.

Meu primeiro estágio me possibilitou conhecer dezenas de pessoas com os mais diferentes tipos de deficiência: surdez, cegueira, deficiência intelectual e as mais diversas deformidades físicas. Conhecer histórias de vidas e modos tão singulares de lidar com a deficiência me proporcionou grande crescimento profissional e acima de tudo pessoal. Passei a infância toda convivendo apenas com crianças que não tinham deficiência. O mesmo aconteceu ao longo da adolescência. Só conhecia minha própria experiência. Então, o trabalho com esse público me auxiliou a compreender de maneira bem mais ampla e contextualizada o fenômeno da deficiência.

Ao longo da formação em Psicologia atuei em outras áreas, como a área de Recursos Humanos, mas apenas a título de aprendizado. Minha carreira na profissão foi se constituindo, com muita luta e determinação, nas áreas que, de fato, eu
escolhi. Concluí o curso de Psicologia, recebendo o diploma de honra ao mérito, sendo considerada a melhor aluna do curso. Receber a láurea acadêmica representou a coroação de cinco anos de muitas lutas e enfrentamentos, o reconhecimento por toda dedicação ao longo daquela formação acadêmica e a recompensa por “todos os leões que precisei matar” ao lado daquela mulher (amiga, parceira, intercessora e mãe), que me acompanhou durante os cinco anos de faculdade.

Depois da faculdade, minhas condições financeiras melhoraram. Pude tirar minha carteira de habilitação, comprar meu carro e desfrutar de uma maior autonomia. Fiz uma especialização na área de Educação, Mestrado em Psicologia e Doutorado em Educação. Tanto no mestrado quanto no doutorado minhas pesquisas se relacionaram a uma temática muito cara para mim: os processos de subjetivação relacionados à deficiência. Nessas pesquisas, minha principal referência teórica foi a filosofia da diferença, em especial os estudos do filósofo francês Michel Foucault. É com ele que tenho compreendido que a deficiência é um campo de experiência, que oferece ao sujeito a possibilidade de um trabalho de si para si mesmo, a fim de produzir modos de vida mais singulares. É com Foucault, que tenho tido a alegria de constatar teoricamente algo que pratiquei ao longo de toda a minha vida, mas não sabia nomear: é possível tomarmos a nossa vida como uma obra de arte. Ter a nossa vida como um objeto sobre o qual podemos fazer um trabalho ético e estético e, assim, a despeito de todo o sofrimento, poder vivê-la intensamente.

Atualmente, minha atuação profissional envolve o campo da educação, principalmente, os aspectos que envolvem as questões da infância. Na clínica, atuo com a proposta da psicologia existencial atendendo crianças, adolescentes e adultos. Na área acadêmica, atuo como professora do curso de Psicologia, lecionando disciplinas que, também, fazem o enlace entre educação, infância, deficiência e psicologia.

Outro Sonho Realizado!

Além da formação acadêmica e da vida profissional, ainda quero compartilhar um pouco mais de mim. Como disse, ao longo da infância, me relacionei de forma muito negativa com a cadeira de rodas. Estar sentada nela era motivo de vergonha, constrangimento e medo da rejeição. Contudo, sempre desejei ser mãe. Em 2010, ano em que me casei, ficou mais claro para mim que, para eu realizar o sonho da maternidade, seria necessário recorrer à cadeira como forma principal de locomoção. Meu marido e eu resolvemos trilhar, juntos, esse caminho que permitiu a chegada da minha Estherzinha.

Em 2011, engravidei e naquele ano aconteceu uma das experiências mais lindas da minha vida. Pude lançar um novo olhar à cadeira de rodas. Costumo dizer que foi um momento de reconciliação e o surgimento de uma amizade com a cadeira. Passei a vê-la não mais como algo que produzia constrangimento e vergonha, mas um recurso que me possibilitaria ser mãe.

Aprendi coisas incríveis estando na cadeira, principalmente, no que diz respeito aos cuidados com a minha filha. Nunca
vou me esquecer do dia no qual descobri como deveria fazer para embalar meu bebê, criando movimentos com minha cadeira. Muito cedo, a Estherzinha começou a compreender as limitações da mãe e se tornou, espontaneamente, uma defensora da inclusão dos seus coleguinhas com deficiência na escola.

Acredito que a Estherzinha tem aprendido lindas lições também com o seu pai, meu companheiro, amigo e marido, que sempre imprime grande leveza às diversas situações desafiadoras que precisamos driblar no cotidiano, devido às condições precárias de acessibilidade. Com amor e carinho, os dois me ajudam muito na produção de novas significações relacionadas a essa relação desafiadora e ao mesmo tampo encantadora, entre a deficiência e a maternidade.

Esse é um breve resumo da minha história, no qual tentei compartilhar como estou vinculada ao tema educação e psicologia, na interface com infância e deficiência. Creio que ficou claro, mas quero ressaltar que esta história tem sido escrita com dois ingredientes muito especiais: o amor e a fé.

Quem Sou

Quem Sou? Meu nome é Fabíola

Sou graduada em Psicologia, mestre em Psicologia e doutora em Educação.
Nessa seção “Quem eu sou”, compartilho um pouco da minha história.

Uma Experiência Limite

Nasci na região metropolitana de Belo Horizonte, em uma cidade com condições precárias de saneamento, urbanização e de moradia. As ruas eram de terra, a água não era tratada e o acesso à saúde muito limitado. Sou de uma família de quatro irmãos. Minha mãe (dona de casa) e meu pai (trabalhador de uma mineradora existente na região) sempre foram pessoas muito batalhadoras e nos deram o melhor que conseguiram, driblando os desafios de uma vida muito “apertada” financeiramente.

Aos três anos, fiquei doente e minha família acreditava que seria algo passageiro. “Mais uma crise de bronquite?” A febre, dores de garganta, dores nas pernas talvez fossem também os sinais de uma gripe ou resfriado (pensaram meus pais). Contudo, se tratava de uma doença muito mais grave, que abriria uma jornada para a vida toda. Depois da “peregrinação” por hospitais e consultórios médicos, cheguei a um hospital de Belo Horizonte. Era uma noite fria e chuvosa. Meus pais não imaginavam o que estava por vir. Então, saíram de casa com poucos agasalhos. Naquela madrugada, meu pai precisou providenciar alguma coisa para me agasalhar e o que conseguiu foram folhas de jornal para me aquecer. Foi ali que tive o diagnóstico de poliomielite.

Internação

Depois do diagnóstico, fui imediatamente internada em um hospital infantil que à época tratava exclusivamente de doenças infecciosas do sistema nervoso central. Meu primeiro destino foi uma ala de isolamento. Permaneci quase um mês naquele lugar e os primeiros dias foram uma verdadeira batalha entre a vida e a morte. Certo dia, os médicos disseram que, talvez, eu viveria mais 24 horas. O que se via naquele bercinho de um quarto solitário era uma menina de três anos, imóvel, estando por perto mais a morte do que a vida. Tanto é que minha mãe, quando ia me visitar, primeiramente ia ao necrotério do hospital, para depois subir até o quarto, onde me via por uma janela de vidro (devido ao período contagioso da doença, eu não podia ter contato físico com ninguém, nem mesmo com a minha mãe. Ela me via, mas eu não a via).

Depois do evento

Depois de muitos anos, compreendi o motivo do ritual da minha mãe. Ela me explicou que preferia ir ao necrotério primeiro e ter a alegria de não encontrar meu corpo lá, o que a fazia encher-se de esperança, do que ir primeiro à enfermaria e correr o risco de se deparar com o berço vazio. Comemorando o fôlego de vida a cada 24 horas, superei a fase aguda da doença e saí do isolamento.

Enfrentei mais três meses de internação, mas em um contexto pouco melhor. Assim fora do isolamento, podia conviver com as dezenas de crianças que tinham condições semelhantes ou piores do que as minhas. Precisei aprender a lidar com as dores das intervenções médicas, a saudade da minha casa, a solidão, principalmente em dias especiais como o Natal, Ano Novo e meu aniversário de quatro anos. Também tive que começar a compreender o que significaria a nova experiência de nunca mais poder andar. Tudo isso que enfrentei só foi possível graças à fé em Deus que desde a infância aprendi a praticar. Creio que essa fé foi o principal componente que me impulsionou na certeza de que os dias vindouros seriam melhores.

Chamado do Herói

Minha volta para casa foi grandemente comemorada, pois afinal foram praticamente quatro meses longe dos meus irmãos. Ao me verem, a primeira providência que tomaram foi tentarem colocar os chinelos nos meus pés para me ensinarem a andar de novo. Mas, aos poucos, eles também entenderam que todo aquele esforço era em vão e passaram, assim como eu, a aceitar a nova realidade.

A jornada estava iniciada e prosseguiria com tratamentos médicos, uso de aparelhos ortopédicos que deixavam marcas roxas em meu corpo, sessões bastante limitadas de fisioterapias, devido à falta de recursos financeiros para um atendimento mais apropriado. Por fim, o tratamento se interrompeu e passei a viver uma vida predominantemente doméstica, arrastando para acompanhar as crianças (irmãos e vizinhos) que enchiam o quintal da minha casa. Assim, tentava viver intensamente minha infância, a despeito de todo aprisionamento vivido em meu corpo.

Educação como Prática de Liberdade

Aos seis anos chegou a hora de ir para a escola. Meus pais recebiam os mais diversos “conselhos” a respeito da minha vida escolar. Algumas pessoas diziam a eles que não valia a pena me colocarem na escola e que seria suficiente que conseguissem uma professora para me ensinar a ler e a escrever em casa. Contudo, estudar já fazia parte dos meus sonhos e achava horrível a ideia de não poder ir à escola.

Graças a Deus, meus pais escolheram investir na minha educação e aos seis anos iniciei no então chamado “jardim de infância”, marcando o inicio de uma trajetória acadêmica muito desafiadora, mas ao mesmo tempo maravilhosa, da qual tenho grande orgulho! Minha mãe me carregava até à escola, voltava para casa a fim de cuidar dos meus irmãos e retornava para me buscar. No tempo que permanecia na escola, precisava contar com as professoras que, com grande carinho e disponibilidade, me carregavam para o pátio, outros ambientes e, até mesmo, ao banheiro (o que me trazia muito constrangimento).

Primeira Cadeira de Rodas

Da pré-escola à terceira série, minha mãe me carregou. Devido às nossas condições financeiras muito ruins, não podíamos comprar uma cadeira de rodas. Quando completei nove anos, ganhei uma cadeira apropriada à minha idade. Foi um grupo de amigos do meu pai que se reuniu para me presentear. Tinha muita vergonha da cadeira, me sentia inferior, com a autoestima fragilizada e muito medo de não ser aceita. Foi esse mesmo grupo de amigos que nos apoiou financeiramente e afetivamente para que eu retomasse meu tratamento ortopédico.

Aos dez anos, fiz duas cirurgias nos quadris que me possibilitaram o uso de uma órtese e bengalas, propiciando uma nova forma de locomoção. Essas cirurgias aconteceramquando eu cursava a quarta série. Em função delas, eu teria que me ausentar da escola por um período de seis meses. Nesse tempo era necessário que eu permanecesse engessada do tórax até os pés. Então precisaria ficar apenas deitada. Para eu não perder todo o ano letivo, algo que para mim era inadmissível, minha família fez um acordo com a escola e conseguimos uma professora para me atender em casa. Essa professora, inesquecível, é Márcia.

Professora Márcia

Ela era nossa vizinha e havia acabado de se formar em magistério. Com grande generosidade, ela realizou o trabalho para minha família de forma totalmente voluntária. Semanalmente, ela ia à escola, pegava o planejamento das aulas e as atividades com minha professora oficial e fazia o trabalho comigo acamada.

Como não podia me sentar, usava uma prancheta para apoiar os cadernos e atividades. No segundo semestre daquele ano, retornei à escola. Apesar de muito fragilizada pelas intervenções cirúrgicas e muitos meses só deitada, consegui concluir os meus primeiros anos de ensino fundamental.

A partir do quinto ano, passei a frequentar a escola usando as órteses (aparelho ortopédico e as bengalas). Depois de um processo bastante lento, alcancei autonomia para me locomover e, para minha grande felicidade, deixei de usar a cadeira de rodas. Foi dessa forma que fiz o restante do ensino fundamental e o ensino médio. Embora já conseguisse uma locomoção melhor, ainda era muito dependente, sobretudo por morar em um lugar com declive, falta de acessibilidade no transporte público e nas escolas. Sendo assim, continuava contando com a ajuda da minha mãe para ir à escola. Aos dezessete anos concluí o ensino médio, ávida por dar sequência aos estudos e realizar meu sonho de fazer faculdade.

Novos Vôos!

Desde a infância, meu desejo era de chegar à faculdade. Apesar das limitações físicas, da pobreza e falta de perspectivas, sempre fui uma sonhadora e esses sonhos foram, gradativamente, se tornando realidade.

Quando iniciei o curso de Psicologia meu desejo era atuar nas áreas clínica e educacional. No segundo ano do curso, assim comecei a buscar o primeiro estágio. Certo dia estava andando com a minha mãe por uma Avenida de Belo Horizonte e avistamos uma associação de pessoas com deficiência. Descobrimos que lá aconteciam encaminhamentos para estágios e empregos. Foi por meio daquela associação que consegui o meu primeiro estágio na área da Psicologia. O que não imaginava era que aquela oportunidade seria para trabalhar com pessoas com deficiência. Aquele estágio foi uma porta que se abriu para me colocar em um caminho que, há vários anos tenho grande prazer em trilhar: trabalhar enlaçando três áreas muito especiais para mim: Educação, Psicologia e o campo da deficiência.

Entrada na faculdade

Meu primeiro estágio me possibilitou conhecer dezenas de pessoas com os mais diferentes tipos de deficiência: surdez, cegueira, deficiência intelectual e as mais diversas deformidades físicas. Conhecer histórias de vidas e modos tão singulares de lidar com a deficiência me proporcionou grande crescimento profissional e acima de tudo pessoal. Passei a infância toda convivendo apenas com crianças que não tinham deficiência. O mesmo aconteceu ao longo da adolescência. Só conhecia minha própria experiência. Então, o trabalho com esse público me auxiliou a compreender de maneira bem mais ampla e contextualizada o fenômeno da deficiência.

Ao longo da formação em Psicologia atuei em outras áreas, como a área de Recursos Humanos, mas apenas a título de aprendizado. Minha carreira na profissão foi se constituindo, com muita luta e determinação, nas áreas que, de fato, eu escolhi. Concluí o curso de Psicologia, recebendo o diploma de honra ao mérito, além disso sendo considerada a melhor aluna do curso. Receber a láurea acadêmica representou a coroação de cinco anos de muitas lutas e enfrentamentos, o reconhecimento por toda dedicação ao longo daquela formação acadêmica bem como a recompensa por “todos os leões que precisei matar” ao lado daquela mulher (amiga, parceira, intercessora e mãe), que me acompanhou durante os cinco anos de faculdade.

Pós Faculdade

Depois da faculdade, minhas condições financeiras melhoraram. Pude tirar minha carteira de habilitação, comprar meu carro e desfrutar de uma maior autonomia. Fiz uma especialização na área de Educação, Mestrado em Psicologia e Doutorado em Educação. Tanto no mestrado bem como no doutorado minhas pesquisas se relacionaram a uma temática muito cara para mim: os processos de subjetivação relacionados à deficiência. Nessas pesquisas, minha principal referência teórica foi a filosofia da diferença, em especial os estudos do filósofo francês Michel Foucault. É com ele que tenho compreendido que a deficiência é um campo de experiência, que oferece ao sujeito a possibilidade de um trabalho de si para si mesmo, a fim de produzir modos de vida mais singulares.

É com Foucault, que tenho tido a alegria de constatar teoricamente algo que pratiquei ao longo de toda a minha vida, mas não sabia nomear: é possível tomarmos a nossa vida como uma obra de arte. Ter a nossa vida como um objeto sobre o qual podemos fazer um trabalho ético e estético e, assim, a despeito de todo o sofrimento, poder vivê-la intensamente.

Atualmente, minha atuação profissional envolve o campo da educação, principalmente, os aspectos que envolvem as questões da infância. Na clínica, atuo com a proposta da psicologia existencial atendendo crianças, adolescentes e adultos. Na área acadêmica, atuo como professora do curso de Psicologia, lecionando disciplinas que, também, fazem o enlace entre educação, infância, deficiência e psicologia.


Outro Sonho Realizado!

Além da formação acadêmica e da vida profissional, ainda quero compartilhar um pouco mais de mim. Bem como disse, ao longo da infância, me relacionei de forma muito negativa com a cadeira de rodas. Estar sentada nela era motivo de vergonha, constrangimento e medo da rejeição. Contudo, sempre desejei ser mãe. Em 2010, ano em que me casei, ficou mais claro para mim que, para eu realizar o sonho da maternidade, seria necessário recorrer à cadeira como forma principal de locomoção. Meu marido e eu resolvemos trilhar, juntos, esse caminho que permitiu a chegada da minha Estherzinha.

Novo olhar e gravidez

Em 2011, engravidei e naquele ano aconteceu uma das experiências mais lindas da minha vida. Desse modo pude lançar um novo olhar à cadeira de rodas. Costumo dizer que foi um momento de reconciliação bem como o surgimento de uma amizade com a cadeira. Passei a vê-la não mais como algo que produzia constrangimento e vergonha, mas um recurso que me possibilitaria ser mãe.

Aprendi coisas incríveis estando na cadeira, principalmente, no que diz respeito aos cuidados com a minha filha. Nunca vou me esquecer do dia no qual descobri como deveria fazer para embalar meu bebê, criando movimentos com minha cadeira. Muito cedo, a Estherzinha começou a compreender as limitações da mãe e se tornou, espontaneamente, uma defensora da inclusão dos seus coleguinhas com deficiência na escola.

Acredito que a Estherzinha tem aprendido lindas lições bem como com o seu pai, meu companheiro, amigo e marido, que sempre imprime grande leveza às diversas situações desafiadoras que precisamos driblar no cotidiano, devido às condições precárias de acessibilidade. Com amor e carinho, os dois me ajudam muito na produção de novas significações relacionadas a essa relação desafiadora e ao mesmo tampo encantadora, entre a deficiência e a maternidade.

Esse é um breve resumo da minha história, no qual tentei compartilhar como estou vinculada ao tema educação e psicologia, na interface com infância e deficiência. Creio que ficou claro, mas quero ressaltar que esta história tem sido escrita com dois ingredientes muito especiais: o amor e a fé.